quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

O cientista que contribuiu para que o Uruguai tenha menos de 100 mortos pelo coronavírus

 

O cientista que contribuiu para que o Uruguai tenha menos de 100 mortos pelo coronavírus

A ‘Nature’ reconhece Gonzalo Moratorio como um dos dez pesquisadores mais importantes de 2020 pelo desenvolvimento de um teste de diagnóstico barato e eficaz que ajudou seu país a conter o vírus

O cientista Gonzalo Moratorio no laboratorio de Evolução Experimental de Vírus do Instituto Pasteur de Montevidéu / Daniela Hirschfeld
O cientista Gonzalo Moratorio no laboratorio de Evolução Experimental de Vírus do Instituto Pasteur de Montevidéu / Daniela Hirschfeld

Quando Gonzalo Moratorio (Montevidéu, 1982) assistiu ao filme Epidemia, estrelado por Dustin Hoffman e Rene Russo, descobriu que quando crescesse iria querer trabalhar contra os vírus e as doenças contagiosas. Tinha 13 anos e seus amigos da escola já o chamavam de Donatello, como o famoso cientista das Tartarugas Ninja, porque o que ele mais gostava de fazer nas horas vagas era resolver problemas e inventar coisas inúteis. Hoje, 25 anos depois do lançamento do filme que determinou o rumo de sua vida, e acompanhado pelos mesmos amigos de então, Moratorio acaba de ser o único latino-americano reconhecido pela revista Nature como um dos dez cientistas mais importantes de 2020 pelo desenvolvimento de um teste para detectar o coronavírus que permitiu ao Uruguai controlar a pandemia de forma exemplar no mundo.

Entre o despertar de sua vocação científica e a consagração internacional que vem com um reconhecimento como este, também entregue a cientistas da estatura de Tedros Adhanom, diretor da OMS, Moratorio publicou 40 artigos de pesquisa, desenvolveu uma patente para projetar vírus de RNA sintético como candidatos a vacinas e treinou em vários times de futebol. Em paralelo à carreira de cientista, iniciada na Universidade da República do Uruguai, onde estudou Ciências Biológicas, Moratorio nunca deixou de jogar futebol. Uma lesão no joelho o tirou de campo.

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Gonzalo Moratorio fez mestrado e doutorado em biologia celular e molecular na mesma universidade de Montevidéu e há mais de 15 anos trabalha para compreender a evolução dos vírus. Entre 2012 e 2018, o cientista fez pós-doutorado no Laboratório de Marco Vignuzzi do Departamento de Virologia do Instituto Pasteur de Paris. Ao terminar, voltou ao Uruguai com a esperança de montar seu próprio laboratório e formar um grupo de pesquisa que lhe permitisse pôr o conhecimento científico a serviço da sociedade.

Hoje, Moratorio é o pesquisador responsável pelo Laboratório de Evolução Experimental de Vírus do Instituto Pasteur de Montevidéu e, além disso, dirige um time de futebol do campeonato universitário do Uruguai. “O que se aprende no futebol e o que tento transmitir aos alunos de doutorado e mestrado é que se deve comemorar o sucesso do companheiro como se fosse o seu”, diz Moratorio por telefone, do jardim do laboratório onde ele e a pesquisadora Pilar Moreno desenvolveram o teste diagnóstico de coronavírus que permitiu ao Uruguai ter menos de 100 mortes após oito meses de pandemia. “Talvez não tenha tido coragem suficiente para estar em uma linha de fogo, como os médicos intensivistas ao lado dos pacientes, mas pude contribuir para a geração de conhecimento e o desenvolvimento de ferramentas que estão salvando vidas.”

Pergunta. Qual foi a origem dos testes e como vocês os desenvolveram?

Resposta. No início da pandemia, recebemos mensagens da Espanha e da Itália sobre o que iria acontecer conosco. Vimos como as fronteiras começaram a ser fechadas e como os aviões foram parando. Seria muito difícil encontrar suprimentos para testes. Eram escassos e caros. Por isso, no Instituto Pasteur de Montevidéu decidimos fazer nossos próprios testes com os materiais e a tecnologia disponíveis no Uruguai. No final, conseguimos uma receita fácil de reproduzir, que tinha a mesma sensibilidade e especificidade de qualquer um dos testes recomendados pela OMS.

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P. O que o diferencia de outros testes de diagnóstico?

R. Nossos PCRs são autônomos e soberanos. Não precisamos de nenhum grande laboratório nem empresa farmacêutica para realizá-los. Isso é uma vantagem porque, por exemplo, os testes da Roche só funcionam com equipamentos da Roche e os equipamentos da Roche só analisam os testes da Roche. O mesmo acontece em outros casos. Nossos testes são para todos os tipos de equipamentos, são abertos e gratuitos porque os financiamos com recursos públicos e a cooperação internacional.

P. Quantos testes produziram?

R. No início da pandemia respondemos por 40% de todos os testes que foram feitos no Uruguai, depois, 30%. No total, desenvolvemos quase 150.000 testes. Deve-se levar em conta que o Uruguai tem três milhões de habitantes e foram feitos cerca de meio milhão de testes. É um dos países que mais realizam testes para cada caso positivo detectado.

P. Como conseguiram isso?

R. Nas mesas dos políticos foi preciso tomar decisões muito importantes. Tínhamos duas opções: trazer absolutamente tudo da Coreia do Sul, técnicos, insumos, centenas de milhares de testes, ou apostar que nós no Uruguai poderíamos fabricá-los sem depender de ninguém. O país escolheu a segunda. Conseguimos fazer milhares de teste desde o dia da primeira infecção. Isso serviu para fazer diagnósticos em massa, rastrear as infecções e isolar os positivos. Pudemos conter as mortes, até o momento são menos de 100 mortos por coronavírus no Uruguai. Também ajudamos a evitar uma quarentena obrigatória que restringiria os direitos individuais.

P. Além do desenvolvimento dos testes, a Nature reconhece a instalação de laboratórios para detecção do vírus em todo o território. Como foi essa experiência?

R. Sim, para nós o mais importante foi poder capacitar muitos alunos de mestrado e doutorado para que se espalhassem pelo país e nos ajudassem a montar laboratórios de diagnóstico em todos os hospitais públicos. Cada local nos fazia um inventário dos equipamentos que tinha à disposição e com isso montávamos pequenos centros de detecção para conter a disseminação do vírus.

P. Conseguiram assim conter os contágios em massa nas fronteiras com o Brasil e a Argentina?

R. A disponibilidade imediata desses testes e a capacidade de implementá-los em todo o território ajudaram a conter a pandemia. As fronteiras, sobretudo a do Brasil, que é o país com mais infecções na América do Sul, eram uma bomba-relógio, por isso colocamos laboratórios nessas áreas específicas. Assim evitamos a entrada de muitos contágios. No entanto, meu medo é que todos esses esforços sejam arruinados porque com o verão as pessoas estão relaxando e os números estão subindo.

P. Acha possível replicar essas experiências em outros países da América Latina?

R. Acredito que sim. O mais importante é descobrir que em nossos países podemos gerar conhecimento e valor agregado. É preciso investir mais dinheiro do que PIB em ciência. Isso se reflete no crescimento geral da sociedade. A ciência é o veículo para a América Latina melhorar sua qualidade de vida. Tomara que vejamos os países de nossas latitudes produzindo as próprias vacinas em um futuro próximo.

P. Qual é a sua opinião sobre o desenvolvimento da vacina contra o coronavírus?

R. Sou muito otimista, acho que há candidatas muito boas, e acho que é preciso entender estes tempos de fabricação e de ensaios clínicos recordes pela urgência do momento. Nunca antes o planeta inteiro esteve atrás do mesmo objetivo. Mas sou extremamente crítico. Acho que não deveria haver nenhum país que tenha mais tempo de espera para a vacina. Espero que os órgãos de poder em nível mundial possam distribuir as vacinas de forma equitativa em todo o mundo.

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